segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Identidade

 

Veja bem, doutora. Eu sou drogada. Dro-ga-da. Entendeu? Não preciso ser uma estudante, nem ter sonhos, e também não interessa se eu gosto de ler e viajar. Ser drogada já me consome tempo demais.
Sou viciada em heroína. O meu caso de amor com ela começou quando eu tinha 13 anos, e hoje, aos 15, já não sei mais quanto tempo me resta. A heroína é uma droga que nos mata aos poucos, doutora. E se hoje estou aqui falando com você, amanhã posso não estar mais.
Sim sim, eu já tentei parar diversas vezes. Mas parece que meu corpo se apaixonou por essa droga. Ele sente falta, e não é uma falta que pode ser curada com uma bala de menta ou uma droga mais leve. Não. É uma falta que me faz passar mal, me contorcer, gritar de dor, aclamar por "um pico". Quando finalmente paro de lutar e me entrego novamente à ela, doutora, digo sempre que é a ultima vez. Mas já é a última vez há muito tempo.
Sou invisível, doutora. Passo na rua e as pessoas não me veem. Nunca viram. Não há mais esperança para mim. Todos já desistiram. Ser drogada também é isso sabe? Ser invisível faz parte do processo. 
Eles me veem como uma doença. Um mal da sociedade, como se eu estivesse apenas esperando a morte chegar. E dizem que a culpa é minha. Mas não vejo desta forma. Podia ser seu filho, doutora. O que você faria? Desistiria dele também? Não, né? Então porque desistem de mim?
Eu costumava acordar cedo e ir estudar, depois ler e passear no parque. Eu costumava ser feliz. Agora tudo gira em torno da heroína. Não sou mais sonhadora. Sou drogada. Não sou mais uma menina de 15 anos. Sou drogada. Não serei advogada. Sou drogada. Deixei de ser tudo isso quando me apaixonei pela heroína. Sou drogada. E não sou nada além disso porque todos me fizeram acreditar que não tem mais volta. Eu mesma acreditei que não sou nada. Por que? Me responda, pare de balançar a cabeça! Preciso de respostas, senão a loucura me alcançará antes da overdose. Preciso de respostas.
Sabe, doutora. Talvez esse seja o problema. Por que não me veem mais como um ser humano? Parece que as pessoas tem medo de mim. Como se ser drogada fosse uma doença contagiosa.
Se tivessem me ajudado antes, doutora, eu não estaria aqui hoje.


ps: Texto escrito após assistir ao filme: "Eu, Christiane F. 13 anos, Drogada e Prostituída".

3 comentários:

  1. Quando eu tinha 12 anos esse livro era algo que nos causava curiosidade, mas ao mesmo tempo era algo proibitivo, pois existia duas palavras no titulo que não podíamos retirar na biblioteca. O tempo passou e com tempo esqueci, mas hoje renasceu em mim a vontade de ler como curiosidade e de tentar reviver os meus 12 anos de idade. Parabéns pelo texto e por me fazer relembrar minha infância.

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    1. É, há uns anos atrás na escola, minha professora colocou um filme sobre drogas pra gente assistir. Aquele filme me marcou, traumatizou por um tempo. Mas eu nem entendia direito o que era tudo aquilo, então, agradeço por ter assistido ao filme da Christiane F. somente agora, pois, somente agora, consegui entendê-lo em sua totalidade.

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  2. O vício é a liberdade que aprisiona.
    GK

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